S I N Ó P S
E D O S L I V R O S
INTRODUÇÃO
O objetivo
desse estudo consiste em fazer uma introdução à origem, natureza e finalidade
dos Evangelhos Sinóticos. Para isso, analisaremos, numa perspectiva
etimológica, as palavras “evangelho” e “sinótico” com o intuito de entender o
longo processo de reconceituação que os termos passaram. No outro momento,
versaremos sobre “os evangelhos” enquanto gênero literário, suas
características e finalidades.
1. EVANGELHO(S)
A palavra
“evangelho” é a transcrição do termo grego “euangelion”, formada por: “eu”,
advérbio, que significa “bem”, e “angello”, verbo, que pode ser traduzido por
“eu anuncio, trago uma mensagem, uma notícia”.
“Evangelho”
situa-nos no plano da interpretação: naquele evento do qual se toma
conhecimento, reconhece-se uma boa notícia. Implica, pois, um julgamento de
valor positivo, um reconhecimento.
A expressão
“Boa-nova” exclui qualquer neutralidade, é uma opção de fé. Certa feita, um
autor judeu, numa tradução do Novo Testamento, sugeriu que o termo “euangelion”
fosse substituído pelo termo neutro “anúncio”. Assim a passagem de Mc 1,1,
“Princípio do Evangelho de Jesus Cristo, Filho de Deus”, seria traduzida por
“Início do anúncio de Yeshua o messias, ben Elohim”. Tal proposta corrompe a
essência do Evangelho, pois por trás dele há uma testemunha engajada; já por
trás de “anúncio”, há um relator “neutro”.
O
significado dado à palavra “evangelho” como conhecemos hoje é o resultado um
longo processo cultural de resignificação. A origem do termo passa pelos
autores profanos. No início, a palavra significou “o presente dado ao portador
de uma boa-nova”. No grego clássico, além do sentido de presente, designava,
mais especificamente, “o sacrifício oferecido por ocasião de uma boa notícia”.
Já no grego helenístico, equivale à própria boa notícia. A diferença é que,
aqui, a ideia, é a de uma boa notícia de uma vitória militar (uso confirmado
pelo historiador grego Plutarco). Durante o Império Romano, a palavra fora
utilizada com referência ao imperador, tido como deus. A notícia no nascimento
de um príncipe herdeiro e dos possíveis benefícios que isto poderia gerar para
o império eram motivos de “boas novas”.
Jesus e os
primeiros cristãos não instituíram o uso que fazem da palavra “evangelho”;
parece terem-na tomado emprestado da Septuaginta (LXX). A LXX emprega 20 vezes
o verbo euangelizesthai e 6 vezes o
substantivo euangelion, euangelia. A palavra “evangelho” tomou por
derivação o termo hebraico “bissár”, “evangelizar”, dimensão alegre do anúncio
que, gradativamente, foi adquirindo um significado religioso como proclamação
da salvação (cf. Sl 40,4.10; Is 52,7). O sentido da palavra, tanto no Dêutero
como no Trito-Isaías, é particularmente significativo: a “boa nova” que
anunciam é a iminente vinda do Reino de Deus, e conferem-lhe, como sinais, a
paz, a libertação, a felicidade (cf. Is 40,9; 52,7; 62,6; 61,1). Assim, para os
judeus só há uma boa nova vinda do Reino de Deus. É esse o sentido empregado
por Jesus também.
No ambiente
do Segundo Testamento, “euangelion” passa por uma significativa evolução. São
130 citações da palavra com suas variantes: 54 empregos do verbo “euangelizei”
e 76 do substantivo “euangelion”. A ideia que perpassa como pano de fundo do
uso dos termos aponta para:
1)
Os discípulos anunciam a Boa-nova de Jesus;
2)
Marcos escreve a Boa-nova de Jesus;
3)
O anunciador tornou-se o anunciado e ato de proclamação tornou-se o texto.
Isso
significa que:
1)
Jesus situa-se exatamente na linha da mensagem de Isaías, da qual faz, segundo
Lucas, a base de seu discurso-programa na sinagoga de Nazaré (Lc 4,18, citando
Is 61,1-2);
2)
Para os cristãos, a Boa-nova não consiste, como entre os gregos e os romanos,
numa multidão de acontecimentos sucessivos e passageiros, de importância mais
ou menos relativa, mas num único evento, capital e fundamental: em Jesus
Cristo, Deus se aproximou dos homens de modo decisivo e definitivo (cf. o
discurso de Pedro At 10,36);
3)
Ao escrever um “evangelho”, Marcos inova. Ao reunir os diferentes elementos
veiculados pela tradição e ao organizá-los numa história de Jesus, o
evangelista abre caminho a um novo gênero literário sem precedentes em outras
literaturas.
Somente na
segunda metade do século II é que se veio a empregar a
palavra euangelion no plural. Justino (+165), no livro Apologia,
66,3, foi quem usou primeiro o termo em memórias dos apóstolos. O enfoque na
utilização do termo não era mais o conteúdo, mas o conjunto dos textos.
2. SINÓTICOS
Em 1776, um
pesquisador alemão chamado J.J. Griesbach publicou, em Halle, a
obra Synopsis evangeliorum (Sinopse dos evangelhos). Foi a primeira
vez que se utilizou o termo “sinótico” aos escritos dos três primeiros
evangelhos.
A ideia de Griesbach
era a de elaborar uma edição de Mateus, Marcos e Lucas, que permitisse abranger
“os três num único olhar” – a origem do termo “sinótico” é grega oriunda de
duas palavras: syn (“junto”) e opsis (“ver”). Assim agindo,
ele se fizera eco da opinião que Agostinho de Hipona, já em 399, expusera em
seu De consensu evangelistarum. Para o bispo de Hipona, os evangelhos
teriam sido escritos na ordem em que estão no Cânon.
Essa
intervenção da sinopse no século XVIII contribuiu enormemente para instaurar a
era da crítica evangélica. Até então, consideravam-se os evangelistas como
testemunhas oculares dos fatos ocorridos, e tudo quanto haviam escrito era
isento de qualquer erro ou contradição. Com a crítica literária, não só essa
imagem tradicional sofreu críticas como a abordagem da vida de Jesus ia também
sofrer profunda alteração.
A Sinopse
evangélica dava como fim aquilo a que se chamava Harmonia evangélica.
Tratava-se de uma narrativa seguida da história de Jesus, constituída
exclusivamente dos elementos provenientes dos quatro evangelhos. Essa narrativa
era organizada de modo a que todas as informações reunidas se completassem num
conjunto coerente e harmonioso. Um bom exemplo desse esforço de síntese
narrativa foi o Diatessaron (“através dos quatro”) de Taciano
(séc.II) que tinha como objetivo provar a harmonia entre os evangelhos.
O trabalho
de Griesbach contribuiu muito para o estudo da Questão sinótica. A questão
girava em torno da relação literária dos três primeiros evangelhos entre si:
Como explicar a notável e complexa teia de concordâncias e discordâncias entre
Mateus, Marcos e Lucas?
A exposição
sinótica consiste numa série de unidades distintas de narrativas e discursos,
completas em si mesmas, e frequentemente colocadas uma após outra, independentemente
de qualquer ligação espacial ou temporal. À vista das semelhanças, a conclusão
parece se impor: os sinóticos, de alguma maneira, parecem depender literalmente
uns dos outros. Na realidade, a questão se complica quando se sabe que os três
evangelhos diferem também muito uns dos outros, tanto no conteúdo quanto na
forma.
Basta
observar as estatísticas do quadro abaixo para verificar a questão levantada.
Passagens
|
Mt
|
Mc
|
Lc
|
Comuns aos
três
|
330
|
330
|
330
|
Comuns a
Mt-Mc
|
178
|
178
|
|
Comuns a
Mc-Lc
|
100
|
100
|
|
Comuns a
Mt-Lc
|
230
|
230
|
|
Próprios a
cada um
|
330
|
53
|
500
|
Com base nas
estáticas do quadro, pode-se afirmar que:
1)
Um grande número de passagens se encontra nos três evangelhos (tríplice
tradição);
2)
Algumas passagens são partilhadas por Mc e Mt e outras por Mc e Lc;
3)
Numerosos textos são encontrados somente em Mt e Lc (dupla tradição);
4)
Cada evangelho contém textos que lhe são próprios.
Fato
interessante a observar é que somente 53 versículos não estão em Mt e Lc. Quase
todo o Evangelho de Marcos está presente nos evangelhos de Mateus e Lucas. Como
explicar essa dependência mútua? Várias hipóteses surgiram a partir do século
XVIII e dentre elas a Teoria das duas Fontes.
Weisse
(1838), abrirá finalmente as portas à Teoria das duas Fontes. Obtém-se
então o esquema que, há mais de um século e meio, serve de postulado de base a
um número incalculável de pesquisas sobre os evangelhos sinóticos.
Segundo
a Teoria das duas Fontes, Mateus e Lucas utilizaram dois documentos para
escrever seu respectivo evangelho; esses documentos são Marcos e Q (fonte
Quelle). Deve-se, entretanto, lembrar que o documento Q jamais foi encontrado
e, por conseguinte, ele é completamente hipotético. Esta fonte seria anterior
ao Evangelho de Marcos, escrito em grego e reuniria as palavras, discursos e
parábolas de Jesus.
3. GÊNEROS LITERÁRIOS
Vimos que
Marcos, ao escrever um evangelho, reunindo diferentes elementos veiculados pela
tradição e organizá-los numa história de Jesus, abre caminho a um novo gênero
literário sem precedentes em outras literaturas.
Os
evangelhos enquanto gênero literário é único, novo. Apresentam-se como textos
narrativos, sem serem crônica ou biografia. Falam da mesma pessoa e dos mesmos
fatos com intuitos específicos. O estilo literário é parecido com a
midraxe Hagadá (narração) – designa ao mesmo tempo um método de
exegese e a produção literária decorrente deste método. Faz-se uma pesquisa
sobre a Escritura para ver de que modo ela atinge seu leitor contemporâneo; é
uma tentativa de atualização da Escritura. Parecido
com Hagadá (aggadah), o evangelho edifica ao atualizar a mensagem da
salvação para o leitor hodierno.
Os
evangelhos não são história e nem um livro de memórias. Não se interessam na
história interior ou exterior do herói, mas manifestam um claro interesse pela
atividade terrena de Jesus sem uma cronologia ou uma topografia precisa.
São querigmas de um acontecimento único e definitivo, da intervenção
de Deus em Jesus Cristo. Em vez de biografia de Jesus, trata-se de testemunho
de fé, de anúncio para despertar a fé no ouvinte.
Os
evangelhos não foram escritos para recordar Jesus ou para glorificar os seus
milagres, constituindo estes últimos apenas uma parte de seu conteúdo, que
contém bem outras coisas; o interesse dominante neles é suscitar a fé e
fortalecê-la. As palavras e as ações de Jesus foram recolhidas à parte e
repetidas na forma de simples narrativas, destinadas a mostrar às
primeiras assembleias cristãs o fundamento de sua fé e proporcionar aos
missionários um sólido substrato para a pregação, a catequese e também para a
argumentação contra os adversários.
Os
evangelhos são textos populares e não eruditos. São textos destinados ao uso
das comunidades e para o uso da propaganda missionária. Assim, é preciso
admitir uma distância entre Jesus e os evangelhos, transbordante da
contribuição da comunidade. Os evangelistas não podem ser reduzidos a meros
compiladores: ele são ao mesmo tempo intérpretes e portadores de uma tradição,
com um equilíbrio ímpar entre liberdade e fidelidade.
Os
evangelhos não se reduzem a única primeira redação de único autor, mas sofreram
diversas modificações ao longo da redação por força das tradições vivas que
circulavam e das adaptações dos redatores para as respectivas comunidades a que
se dirigiam. À medida que as comunidades iam lendo e pregando tais tradições,
impingiam modificações conforme seu contexto existencial, refundindo os textos.
Os
evangelhos pertencem a um grande gênero literário e dentro dele há outros
gêneros (narrativas, milagres, parábolas, alegorias, metáforas, apocalipse
etc.) que conservam elementos da tradição moldados por eles. O que está
em jogo na atualidade não é a pluralidade de gêneros literários presentes nos
Evangelhos, mas o grau de historicidade do que se relata e sua evolução.
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